12 agosto, 2007

Pensem nas Feridas Como Rosas Cálidas

No último sábado, 11 de agosto, fui ao Teatro Municipal ver Navalha na Carne, de Plínio Marcos. Não conhecia o texto completo, mas já havia assistido a um esquete num exercício passado pelo diretor de um grupo que participei. Conta a história de Neuza Sueli, prostituta humilhada, manipulada e espancada por Vado, espécie de cafetão. Aparece também uma terceira figura, o homossexual Veludo, formando um círculo de troca de insultos e preconceitos.
Tenho a certeza absoluta de que Plínio, quando escreveu, quis mostrar as vísceras de uma sociedade doente, machista e preconceituosa. Vado, durante todo o tempo, usa e abusa de agressões bem conhecidas por nós, mulheres: diz a Neuza que ela é velha e feia, que dali a pouco tempo ninguém mais pagaria por seus serviços, pega seu dinheiro e fala que só a “atura por causa da grana”.
Vado reflete a ação de grande parte da sociedade da época (foi escrita na década de 80), e por isso foi tão importante para a dramaturgia nacional. Infelizmente, a peça vem se mostrando extremamente atual. Todas já ouvimos humilhação semelhante, seja do companheiro, da mídia ou de um ignorante qualquer. Temos nossos corpos comparados a objetos: ora somos cerveja, biquíni, chinelo. Desde pequenas, somos coagidas a acreditar que uma mulher não é nada sem um homem ao lado. Chegou solteira e sem namorado aos trinta? Coitada!
Todos esses fatores somam-se e não é de se espantar que uma mulher suporte calada agressões físicas e morais de seus companheiros. A propósito, nem sei se tem como separar agressão física e moral. A violência moral normalmente somatiza-se em doenças, tais como anorexia, bulimia, queda de resistência do organismo, enquanto a violência física abala psicologicamente a mulher. Não há como comparar a dor de quebrar um braço tropeçando na rua e ter seu braço quebrado pelo homem que você ama e escolheu para dividir a vida.
O fato de Neuza ser uma prostituta é um mero detalhe. Por todo o mundo, (especialmente nos países de cultura latina, que têm um ranço machista muito forte), mulheres de todas as classes sociais e níveis de instrução são manipuladas por seus companheiros. Por isso, mesmo com as gírias antigas e o figurino fora de moda, nos vemos em Neuza e é como se a história acontecesse hoje. Isso dói demais.
A peça põe o dedo na ferida, e incomoda. Mas, acima de tudo, incomoda a hipocrisia. Sentia-me num circo dos horrores cada vez que Vado humilhava Neuza, pois a platéia se acabava em gargalhadas. Em uma cena, ele a chama de velha, e Neuza responde, quase chorando, que tem apenas trinta anos. Vado completa: “de puteiro, né?”

Este trecho faz referência a um ponto fraco da auto-estima feminina: a idade. Quantas mulheres hoje se acabam em cremes, botox e até mesmo cirurgias plásticas, para aparentarem uma juventude que não existe? Quantas escondem a idade? Quantas simplesmente deprimem por não dispor de recursos financeiros para estas finalidades?
Eu poderia citar vários trechos, mas logo nas primeiras gargalhadas cheguei a um estado de revolta onde não ouvia mais nada, só via tudo em câmera lenta e chorava feito uma criança.
Enquanto Neuza chorava no palco, envergonhada, acabada, o público ria.
Era uma prostituta ali no palco. Mas podia ser uma freira, uma médica, uma faxineira ou uma ajudante de produção. Não muda nada: era uma mulher. Podia ser eu, você, sua mãe. Pobre ou rica, branca, negra, oriental, indígena...
Aí abrimos o jornal e nos deparamos com um grupo de jovens que espancou uma mulher porque achou que era uma prostituta. Aí queremos justiça, pena de morte. Aí a culpa é do presidente. Hipocrisia, cinismo, cara-de-pau. Cada um que riu ali, naquele momento, bateu em mim. Só, talvez, não estivesse bêbado e embalado o suficiente pra concretizar a ação fisicamente, mas bateu na minha cara e na de todas as mulheres. As mulheres que riram, pobres masoquistas, bateram em si mesmas.
Lamento profundamente a falta de maturidade do público teatral sorocabano. Falta de maturidade, de vergonha, de consciência social, de espelho em casa. Só peço para que cada pessoa que riu da desgraça de Neuza se sinta diretamente culpada por cada mulher espancada, seja aqui, seja no Nordeste ou no Afeganistão. E, por favor, tenha vergonha de sair na rua. Porque graças a vocês, muitas “Neuzas Suelis” já se envergonharam de ser mulher.
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Lauren Archilla é estudante de psicologia e escreve para o blog Acordei que Sonhava http://www.acordeiquesonhava.blogspot.com/

Um comentário:

L. Archilla disse...

Correção: o texto é do final dos anos 60.